Live from Copenhaga 2009
Cop 15 Webcast
Muitas vezes vistos como
"atrasados" ou como entraves à expansão econômica, os povos indígenas
apontam, com seus saberes e seu modo de se relacionar com o meio
ambiente, um caminho alternativo para o Brasil, diz a antropóloga
Manuela Carneiro da Cunha, que lança coletânea de ensaios sobre o tema.
Em “Índios no Brasil: História, direitos e cidadania” (Companhia das
Letras), ela reúne trabalhos das últimas três décadas sobre temas como a
demarcação de terras e as mudanças na Constituição. Nesta entrevista, a
professora da Universidade de Chicago, convidada pelo governo federal
para desenvolver um estudo sobre a relação entre os saberes tradicionais
e as ciências, critica o ‘desenvolvimentismo acelerado’ da gestão Dilma
e defende ‘um novo pacto’ da sociedade com as populações indígenas.
“Índios
no Brasil” é uma compilação de textos publicados desde o início da
década de 1980. Ao longo desse período, quais foram as principais
mudanças no debate público brasileiro sobre as populações indígenas?
Eu
colocaria como marco inicial o ano de 1978, ano em que, em plena
ditadura, houve uma mobilização sem precedentes em favor dos direitos
dos índios. Na época, o Ministro do Interior, a pretexto de emancipar
índios de qualquer tutela, queria “emancipar” as terras indígenas e
colocá-las no mercado. O verdadeiro debate centrava-se no direito dos
índios às suas terras, um princípio que vigorou desde a Colônia. Nesse
direito não se mexia. Mas desde a Lei das Terras de 1850 pelo menos, o
expediente foi o mesmo: afirmava-se que os índios estavam “confundidos
com a massa da população” e distribuía-se suas terras. Em 1978,
tentou-se repetir essa mistificação. A sociedade civil, na época
impedida de se manifestar em assuntos políticos, desaguou seu protesto
na causa indígena. Acho que o avanço muito significativo das demarcações
desde essa época teve um impulso decisivo nessa mobilização popular.
Outro marco foi a Assembleia Constituinte, dez anos mais tarde. O
direito às terras tendo sido novamente proclamado e especificado, o
debate transferiu-se para o que se podia e não se podia fazer nas terras
indígenas, e dois temas dominaram esse debate: mineração e
hidrelétricas. Muito significativa foi a defesa feita pela Coordenação
Nacional dos Geólogos de que não se minerasse em áreas indígenas, que
deveriam ficar como uma reserva mineral para o país. Desde essa época,
as mudanças radicais dos meios de comunicação disseminaram para um
público muito amplo controvérsias como a que envolve por exemplo Belo
Monte e hidrelétricas no Tapajós, e situações dramáticas como as dos awá
no Maranhão ou dos kaiowá no Mato Grosso do Sul. Creio que a maior
informação da sociedade civil mudou a qualidade dos debates. Um tema
novo de debates surgiu com a Convenção da Biodiversidade, em 1992, o dos
direitos intelectuais dos povos indígenas sobre seus conhecimentos. E
finalmente, com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), está se debatendo a forma de colocar em prática o direito dos
povos indígenas a serem consultados sobre projetos que os afetam.
Você
observa que a população indígena no país aumentou de 250 mil pessoas,
em 1993, para 897 mil, segundo o Censo de 2010. A que pode ser atribuído
esse aumento? As políticas de demarcação de terras e promoção dos
direitos indígenas têm correspondido a ele?
O
grande aumento da população indígena se deu no período de 1991 a 2000.
Entre 2000 e 2010, o aumento foi proporcionalmente menor do que na
população em geral. Só uma parcela desse crescimento pode ser atribuído a
uma melhora na mortalidade infantil e na fertilidade. O que realmente
mudou é que ser índio deixou de ser uma identidade da qual se tem
vergonha. Índios que moram nas cidades, em Manaus por exemplo, passaram a
se declarar como tais. E comunidades indígenas, sobretudo no Nordeste,
reemergiram. Mas, contrariamente ao que se pode imaginar (e se tenta
fazer crer), essas etnias reemergentes não têm reclamos de terras de
áreas significativas.
Como
avalia a atuação do governo da presidente Dilma Rousseff em relação às
populações indígenas, diante das críticas provocadas pela Portaria 303
(que limitaria o usufruto das terras indígenas demarcadas) e o novo
Código Florestal, por exemplo?
O
Executivo tem várias faces: seu programa de redistribuição de renda
está sendo um sucesso; mas seu desenvolvimentismo acelerado atropela
outros valores básicos. Além disso, o agronegócio só tem aumentado seu
poder político, o que desembocou no decepcionante resultado do
aggiornamento do Código Florestal em 2012. O governo tentou se colocar
como árbitro, mas ficou refém de um setor particularmente míope do
agronegócio, aquele que não mede as consequências do desmatamento e da
destruição dos rios. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e
a Academia Brasileira de Ciências, em vários estudos enviados ao
Congresso e publicados, apresentaram as conclusões e recomendações dos
cientistas. Foram ignoradas. Agora acaba de sair um estudo do Imazon
(Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) que reitera e
quantifica uma das recomendações centrais desses estudos. Para atender à
demanda crescente de alimentos, a solução não é ocupar novas terras, e
sim aumentar a produtividade, particularmente na pecuária, responsável
pela ocupação de novos desmatamentos. O governo tem um papel fundamental
a desempenhar: cabe a ele estabelecer segurança, regularizando o caos
que hoje reina na titulação das terras no Brasil. Basta ver que, como se
noticiou há dias, as terras tituladas no Brasil ultrapassam as terras
que realmente existem em área equivalente a mais de dois estados de São
Paulo. Um cadastro confiável é perfeitamente possível, é preciso vontade
política para alcançá-lo. Você perguntou especificamente pela Portaria
303/2012, da Advocacia Geral da União, que pretende abusivamente
estender a todas as situações de terras indígenas as restrições
decididas pelo STF para o caso complicadíssimo de Raposa Serra do Sol em
Roraima. Ela é mais um sintoma de tendências contraditórias dentro do
Executivo, que, por um lado, conseguiu “desintrusar” pacificamente uma
área xavante, mas, por outro lado, admite uma portaria como essa. Ela é
um absurdo, e não é à toa que foi colocada em banho-maria pelo governo.
Foi suspensa, mas não cancelada… A própria Associação Nacional dos
Advogados da União pediu em setembro sua revogação e caracterizou sua
orientação como “flagrantemente inconstitucional”. Essa portaria também
fere pelo menos quatro artigos da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil
é signatário.
Em um
ensaio da década de 1990, você já falava sobre a disputa por recursos
minerais e hídricos em áreas indígenas. Acredita que essas disputas
estão mais acirradas hoje?
Já
na Constituinte, em 1988, esses dois temas foram centrais. Chegou-se a
um compromisso, que estipulava condições para acesso a esses recursos:
ouvir as comunidades afetadas e autorização do Congresso Nacional
(artigo 231 parágrafo 3). A disputa não mudou, mas o ambiente político
atual favorece uma nova ofensiva da parte dos que nunca se conformaram. E
assim surgem novas investidas no Congresso: projetos de lei para
usurpar do Executivo a responsabilidade da demarcação das terras e para
abrir as áreas indígenas à mineração. Por sua vez, Belo Monte foi
enfiado goela abaixo de modo autoritário: o Executivo atropelou a
consulta prévia, livre e informada a que os índios têm direito, e não
foram cumpridas condicionantes essenciais acordadas, por exemplo no
tocante ao atendimento à saúde indígena.
No
ensaio sobre a política indigenista do século XIX, você mostra como
naquele momento se consolidou uma visão dos índios como povos
“primitivos” que teriam por destino serem incorporados ao “progresso”
ocidental. Até que ponto essa ideia persiste hoje?
Essa
visão está cada vez mais obsoleta: a noção triunfalista de um progresso
medido por indicadores como o PIB é hoje seriamente criticada. Valores
como sustentabilidade ambiental, justiça social, desenvolvimento humano e
diversidade são parte agora do modo de avaliar o verdadeiro progresso
de um país. Por outra parte, no século XIX, positivistas e
evolucionistas sociais puseram em voga a ideia de uma marcha inexorável
da História: qualquer que fosse a política, os índios estariam fadados
ao desaparecimento, quando não simplesmente físico, pelo menos social.
Essa também é uma falácia que a História ela própria desmistificou: os
índios, felizmente, estão aqui para ficar. A História não se faz por si,
são pessoas que fazem a História, e seus atos têm consequências. Usa
esse entulho ideológico quem carece de argumentos.
No
ensaio “O futuro da questão indígena”, você defende a necessidade de
“um novo pacto com as populações indígenas” e aponta a
“sociodiversidade” como “condição de sobrevivência” para o mundo. Como
define “sociodiversidade”, e o que seria esse “novo pacto”?
O
Brasil não é só megadiverso pela sua grande diversidade de espécies,
ele também é megadiverso pelas sociedades distintas que abriga. Segundo o
censo do IBGE de 2010, há 305 etnias indígenas no Brasil, que falam 274
línguas. Essa sociodiversidade é, segundo Lévi-Strauss, um capital
inestimável de imaginação sociológica e uma fonte de conhecimento. Um
mundo sem diversidade é um mundo morto. E quanto ao pacto com as
populações indígenas que evoco, trata-se do seguinte: os índios que
conservaram a floresta e a biodiversidade até agora (basta ver como o
Parque Nacional do Xingu é uma ilha verde num mar de devastação) estão
sujeitos a grandes pressões de madeireiras e de vários outros agentes
econômicos. Nada garante, se as condições não mudarem, que possam
continuar nesse rumo. Para o Brasil, que precisa com urgência de um
programa de conservação da floresta em pé, um pacto com as populações
indígenas para esse fim seria essencial.
Na
Rio+20, você participou de um painel sobre as contribuições dos saberes
indígenas para as ciências. O que pode ser feito para possibilitar esse
diálogo?
O
conhecimento das diversas sociedades indígenas pode continuar a trazer
contribuições da maior relevância para temas como previsão e adaptação a
mudanças climáticas, conservação da biodiversidade, ecologia,
substâncias com atividade biológica, substâncias com possíveis usos
industriais e muitos outros. Isso já está reconhecido e posto em prática
no âmbito da Convenção pela Diversidade Biológica e no Painel do Clima,
por exemplo. Poder-se-ia pensar que bastaria recolher essas informações
e usá-las na nossa ciência quando úteis. Mas há outra dimensão
importante desses saberes, que é seu modo específico de produzir
conhecimento. Essa diversidade nos permite pensar diferentemente, sair
dos limites de nossos axiomas. Não se trata, como fazem certos
movimentos new age, de atribuir um valor superior aos conhecimentos
tradicionais; não se trata de aderir a eles. Tampouco se trata de
assimilá-los e diluí-los na ciência acadêmica. A importância de modos de
conhecimento diferentes é nos fazer perceber que se pode pensar de
outro modo. Foi abandonando um único postulado de Euclides que
Lobatchevski e Bolayi viram de modo inteiramente novo a geometria. Por
isso o diálogo dos diferentes sistemas de conhecimentos entre si e com a
ciência deve preservar a autonomia de cada qual. O Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovação, via CNPq, encomendou-me um estudo para
lançar as bases de um novo diálogo entre ciência e sistemas de
conhecimentos tradicionais. Não é simples. Mas desde já sabemos que isso
implicará formas institucionais que empoderem os vários parceiros. Um
projeto-piloto que está sendo planejado nesse contexto responde a uma
das diretrizes da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação) que faz parte do Tratado sobre Recursos Fitogenéticos.
Trata-se da conservação da diversidade agrícola de cultivares de
mandioca, sob a condução de populações indígenas do Rio Negro. A escolha
não é por acaso. As agricultoras do médio e do alto Rio Negro
conseguiram manter, criar e acumular centenas de variedades de mandioca.
Como interpreta mobilizações populares recentes em torno de causas indígenas, como aconteceu em favor dos guarani kaiowá?
Acho
salutares essas mobilizações que, como já disse, são fruto de uma nova
era na informação. Diante do recuo político nas questões ambiental,
indígena e quilombola, há vozes que se levantam com indignação. A
situação trágica dos guarani kaiowá, pontuada por suicídios de jovens, é
emblemática do absurdo que seria a aplicação da Portaria 303/2012. Uma
ampliação mais do que justa de suas terras — já que as que lhes
garantiram não correspondem ao que determina o artigo 231 da
Constituição — levaria a colocar em risco as poucas terras que têm. Os
suicídios kaiowá atingem cada um de nós: somos todos kaiowá.
* via O Globo
"atrasados" ou como entraves à expansão econômica, os povos indígenas
apontam, com seus saberes e seu modo de se relacionar com o meio
ambiente, um caminho alternativo para o Brasil, diz a antropóloga
Manuela Carneiro da Cunha, que lança coletânea de ensaios sobre o tema.
Em “Índios no Brasil: História, direitos e cidadania” (Companhia das
Letras), ela reúne trabalhos das últimas três décadas sobre temas como a
demarcação de terras e as mudanças na Constituição. Nesta entrevista, a
professora da Universidade de Chicago, convidada pelo governo federal
para desenvolver um estudo sobre a relação entre os saberes tradicionais
e as ciências, critica o ‘desenvolvimentismo acelerado’ da gestão Dilma
e defende ‘um novo pacto’ da sociedade com as populações indígenas.
“Índios
no Brasil” é uma compilação de textos publicados desde o início da
década de 1980. Ao longo desse período, quais foram as principais
mudanças no debate público brasileiro sobre as populações indígenas?
Eu
colocaria como marco inicial o ano de 1978, ano em que, em plena
ditadura, houve uma mobilização sem precedentes em favor dos direitos
dos índios. Na época, o Ministro do Interior, a pretexto de emancipar
índios de qualquer tutela, queria “emancipar” as terras indígenas e
colocá-las no mercado. O verdadeiro debate centrava-se no direito dos
índios às suas terras, um princípio que vigorou desde a Colônia. Nesse
direito não se mexia. Mas desde a Lei das Terras de 1850 pelo menos, o
expediente foi o mesmo: afirmava-se que os índios estavam “confundidos
com a massa da população” e distribuía-se suas terras. Em 1978,
tentou-se repetir essa mistificação. A sociedade civil, na época
impedida de se manifestar em assuntos políticos, desaguou seu protesto
na causa indígena. Acho que o avanço muito significativo das demarcações
desde essa época teve um impulso decisivo nessa mobilização popular.
Outro marco foi a Assembleia Constituinte, dez anos mais tarde. O
direito às terras tendo sido novamente proclamado e especificado, o
debate transferiu-se para o que se podia e não se podia fazer nas terras
indígenas, e dois temas dominaram esse debate: mineração e
hidrelétricas. Muito significativa foi a defesa feita pela Coordenação
Nacional dos Geólogos de que não se minerasse em áreas indígenas, que
deveriam ficar como uma reserva mineral para o país. Desde essa época,
as mudanças radicais dos meios de comunicação disseminaram para um
público muito amplo controvérsias como a que envolve por exemplo Belo
Monte e hidrelétricas no Tapajós, e situações dramáticas como as dos awá
no Maranhão ou dos kaiowá no Mato Grosso do Sul. Creio que a maior
informação da sociedade civil mudou a qualidade dos debates. Um tema
novo de debates surgiu com a Convenção da Biodiversidade, em 1992, o dos
direitos intelectuais dos povos indígenas sobre seus conhecimentos. E
finalmente, com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), está se debatendo a forma de colocar em prática o direito dos
povos indígenas a serem consultados sobre projetos que os afetam.
Você
observa que a população indígena no país aumentou de 250 mil pessoas,
em 1993, para 897 mil, segundo o Censo de 2010. A que pode ser atribuído
esse aumento? As políticas de demarcação de terras e promoção dos
direitos indígenas têm correspondido a ele?
O
grande aumento da população indígena se deu no período de 1991 a 2000.
Entre 2000 e 2010, o aumento foi proporcionalmente menor do que na
população em geral. Só uma parcela desse crescimento pode ser atribuído a
uma melhora na mortalidade infantil e na fertilidade. O que realmente
mudou é que ser índio deixou de ser uma identidade da qual se tem
vergonha. Índios que moram nas cidades, em Manaus por exemplo, passaram a
se declarar como tais. E comunidades indígenas, sobretudo no Nordeste,
reemergiram. Mas, contrariamente ao que se pode imaginar (e se tenta
fazer crer), essas etnias reemergentes não têm reclamos de terras de
áreas significativas.
Como
avalia a atuação do governo da presidente Dilma Rousseff em relação às
populações indígenas, diante das críticas provocadas pela Portaria 303
(que limitaria o usufruto das terras indígenas demarcadas) e o novo
Código Florestal, por exemplo?
O
Executivo tem várias faces: seu programa de redistribuição de renda
está sendo um sucesso; mas seu desenvolvimentismo acelerado atropela
outros valores básicos. Além disso, o agronegócio só tem aumentado seu
poder político, o que desembocou no decepcionante resultado do
aggiornamento do Código Florestal em 2012. O governo tentou se colocar
como árbitro, mas ficou refém de um setor particularmente míope do
agronegócio, aquele que não mede as consequências do desmatamento e da
destruição dos rios. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e
a Academia Brasileira de Ciências, em vários estudos enviados ao
Congresso e publicados, apresentaram as conclusões e recomendações dos
cientistas. Foram ignoradas. Agora acaba de sair um estudo do Imazon
(Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) que reitera e
quantifica uma das recomendações centrais desses estudos. Para atender à
demanda crescente de alimentos, a solução não é ocupar novas terras, e
sim aumentar a produtividade, particularmente na pecuária, responsável
pela ocupação de novos desmatamentos. O governo tem um papel fundamental
a desempenhar: cabe a ele estabelecer segurança, regularizando o caos
que hoje reina na titulação das terras no Brasil. Basta ver que, como se
noticiou há dias, as terras tituladas no Brasil ultrapassam as terras
que realmente existem em área equivalente a mais de dois estados de São
Paulo. Um cadastro confiável é perfeitamente possível, é preciso vontade
política para alcançá-lo. Você perguntou especificamente pela Portaria
303/2012, da Advocacia Geral da União, que pretende abusivamente
estender a todas as situações de terras indígenas as restrições
decididas pelo STF para o caso complicadíssimo de Raposa Serra do Sol em
Roraima. Ela é mais um sintoma de tendências contraditórias dentro do
Executivo, que, por um lado, conseguiu “desintrusar” pacificamente uma
área xavante, mas, por outro lado, admite uma portaria como essa. Ela é
um absurdo, e não é à toa que foi colocada em banho-maria pelo governo.
Foi suspensa, mas não cancelada… A própria Associação Nacional dos
Advogados da União pediu em setembro sua revogação e caracterizou sua
orientação como “flagrantemente inconstitucional”. Essa portaria também
fere pelo menos quatro artigos da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil
é signatário.
Em um
ensaio da década de 1990, você já falava sobre a disputa por recursos
minerais e hídricos em áreas indígenas. Acredita que essas disputas
estão mais acirradas hoje?
Já
na Constituinte, em 1988, esses dois temas foram centrais. Chegou-se a
um compromisso, que estipulava condições para acesso a esses recursos:
ouvir as comunidades afetadas e autorização do Congresso Nacional
(artigo 231 parágrafo 3). A disputa não mudou, mas o ambiente político
atual favorece uma nova ofensiva da parte dos que nunca se conformaram. E
assim surgem novas investidas no Congresso: projetos de lei para
usurpar do Executivo a responsabilidade da demarcação das terras e para
abrir as áreas indígenas à mineração. Por sua vez, Belo Monte foi
enfiado goela abaixo de modo autoritário: o Executivo atropelou a
consulta prévia, livre e informada a que os índios têm direito, e não
foram cumpridas condicionantes essenciais acordadas, por exemplo no
tocante ao atendimento à saúde indígena.
No
ensaio sobre a política indigenista do século XIX, você mostra como
naquele momento se consolidou uma visão dos índios como povos
“primitivos” que teriam por destino serem incorporados ao “progresso”
ocidental. Até que ponto essa ideia persiste hoje?
Essa
visão está cada vez mais obsoleta: a noção triunfalista de um progresso
medido por indicadores como o PIB é hoje seriamente criticada. Valores
como sustentabilidade ambiental, justiça social, desenvolvimento humano e
diversidade são parte agora do modo de avaliar o verdadeiro progresso
de um país. Por outra parte, no século XIX, positivistas e
evolucionistas sociais puseram em voga a ideia de uma marcha inexorável
da História: qualquer que fosse a política, os índios estariam fadados
ao desaparecimento, quando não simplesmente físico, pelo menos social.
Essa também é uma falácia que a História ela própria desmistificou: os
índios, felizmente, estão aqui para ficar. A História não se faz por si,
são pessoas que fazem a História, e seus atos têm consequências. Usa
esse entulho ideológico quem carece de argumentos.
No
ensaio “O futuro da questão indígena”, você defende a necessidade de
“um novo pacto com as populações indígenas” e aponta a
“sociodiversidade” como “condição de sobrevivência” para o mundo. Como
define “sociodiversidade”, e o que seria esse “novo pacto”?
O
Brasil não é só megadiverso pela sua grande diversidade de espécies,
ele também é megadiverso pelas sociedades distintas que abriga. Segundo o
censo do IBGE de 2010, há 305 etnias indígenas no Brasil, que falam 274
línguas. Essa sociodiversidade é, segundo Lévi-Strauss, um capital
inestimável de imaginação sociológica e uma fonte de conhecimento. Um
mundo sem diversidade é um mundo morto. E quanto ao pacto com as
populações indígenas que evoco, trata-se do seguinte: os índios que
conservaram a floresta e a biodiversidade até agora (basta ver como o
Parque Nacional do Xingu é uma ilha verde num mar de devastação) estão
sujeitos a grandes pressões de madeireiras e de vários outros agentes
econômicos. Nada garante, se as condições não mudarem, que possam
continuar nesse rumo. Para o Brasil, que precisa com urgência de um
programa de conservação da floresta em pé, um pacto com as populações
indígenas para esse fim seria essencial.
Na
Rio+20, você participou de um painel sobre as contribuições dos saberes
indígenas para as ciências. O que pode ser feito para possibilitar esse
diálogo?
O
conhecimento das diversas sociedades indígenas pode continuar a trazer
contribuições da maior relevância para temas como previsão e adaptação a
mudanças climáticas, conservação da biodiversidade, ecologia,
substâncias com atividade biológica, substâncias com possíveis usos
industriais e muitos outros. Isso já está reconhecido e posto em prática
no âmbito da Convenção pela Diversidade Biológica e no Painel do Clima,
por exemplo. Poder-se-ia pensar que bastaria recolher essas informações
e usá-las na nossa ciência quando úteis. Mas há outra dimensão
importante desses saberes, que é seu modo específico de produzir
conhecimento. Essa diversidade nos permite pensar diferentemente, sair
dos limites de nossos axiomas. Não se trata, como fazem certos
movimentos new age, de atribuir um valor superior aos conhecimentos
tradicionais; não se trata de aderir a eles. Tampouco se trata de
assimilá-los e diluí-los na ciência acadêmica. A importância de modos de
conhecimento diferentes é nos fazer perceber que se pode pensar de
outro modo. Foi abandonando um único postulado de Euclides que
Lobatchevski e Bolayi viram de modo inteiramente novo a geometria. Por
isso o diálogo dos diferentes sistemas de conhecimentos entre si e com a
ciência deve preservar a autonomia de cada qual. O Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovação, via CNPq, encomendou-me um estudo para
lançar as bases de um novo diálogo entre ciência e sistemas de
conhecimentos tradicionais. Não é simples. Mas desde já sabemos que isso
implicará formas institucionais que empoderem os vários parceiros. Um
projeto-piloto que está sendo planejado nesse contexto responde a uma
das diretrizes da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação) que faz parte do Tratado sobre Recursos Fitogenéticos.
Trata-se da conservação da diversidade agrícola de cultivares de
mandioca, sob a condução de populações indígenas do Rio Negro. A escolha
não é por acaso. As agricultoras do médio e do alto Rio Negro
conseguiram manter, criar e acumular centenas de variedades de mandioca.
Como interpreta mobilizações populares recentes em torno de causas indígenas, como aconteceu em favor dos guarani kaiowá?
Acho
salutares essas mobilizações que, como já disse, são fruto de uma nova
era na informação. Diante do recuo político nas questões ambiental,
indígena e quilombola, há vozes que se levantam com indignação. A
situação trágica dos guarani kaiowá, pontuada por suicídios de jovens, é
emblemática do absurdo que seria a aplicação da Portaria 303/2012. Uma
ampliação mais do que justa de suas terras — já que as que lhes
garantiram não correspondem ao que determina o artigo 231 da
Constituição — levaria a colocar em risco as poucas terras que têm. Os
suicídios kaiowá atingem cada um de nós: somos todos kaiowá.
* via O Globo
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