Quando começou, o Brasil não acreditava nele.
Ingredientes da Amazónia? Porquê? Mas o mundo acreditou, e Alex Atala
tornou-se muito maior do que alguma vez imaginara. Hoje, o chef do
D.O.M. está no topo, entre os melhores. Mas avisa que a cozinha
brasileira não se pode resumir a ele. "Se não se criar uma nova geração,
ela vai sumir".
Este é o tempo de Alex Atala.
E
o que faz um cozinheiro quando chega ao topo? Quando é admirado e
invejado, quando se torna um dos grandes do seu país, é considerado uma
das pessoas mais influentes do mundo e todos querem saber o que ele
pensa? O que lhe passa pela cabeça? O desejo de voltar apenas a
cozinhar? A ideia de deixar tudo e sair de cena? A vontade de salvar o
mundo? A angústia do futuro?
O brasileiro Atala faz, com o
espanhol Ferran Adrià e o dinamarquês René Redzepi, parte de uma geração
de homens que usaram a cozinha para transformar os seus países — e o
mundo. Quando atravessa o seu restaurante, o D.O.M., em São Paulo,
sente-se uma ligeira emoção a percorrer a sala, os olhares seguem-no
discretamente quando entra na cozinha. É um homem grande, imponente,
cabelo grisalho, muito curto, barba ruiva a ficar grisalha, hoje mais
comprida do que há uns anos, braços tatuados, sorriso simpático, olhar
penetrante.
Aproxima-se das mesas para cumprimentar alguns
clientes. Um deles, sentado sozinho a uma mesa, termina a refeição e
aguarda o momento de poder falar com o chef na cozinha. Atala
autografa-lhe o livro que acabou de lançar — D.O.M. – Redescobrindo o
Ingrediente Brasileiro — e deixa-se fotografar com ele.
Daí a
pouco está sentado à nossa frente numa mesa na sala superior do D.O.M.
Já tem mais pessoas à espera lá em baixo. É mais “um dia corrido”. E,
sim, o futuro preocupa-o.
brasileira chama-se Alex Atala. É verdade. Se a gente não criar uma
nova geração, a cozinha brasileira vai sumir. Ela não pode ser mais
minha. A cozinha brasileira só vai existir se ela não for minha, se for
do povo, se for de outros chefs; senão, ela morre.”
A fama tem
destas coisas. Ao princípio, no Brasil, ninguém parecia acreditar muito
no rebelde tatuado que cozinhava com ingredientes exóticos com nomes que
ninguém, pelo menos em São Paulo ou no Rio, conseguia pronunciar.
“Muitas pessoas conseguiram ficar famosas no Brasil depois de fazerem
sucesso fora, porque o Brasil nunca acreditou na semente, sempre
acreditou na flor. Mas a flor, para crescer, tem de nascer de uma
semente”, diz. “A minha reputação foi toda construída fora do Brasil
para depois ser reconhecida cá dentro. Se eu dependesse desse
reconhecimento do Brasil, talvez nunca tivesse chegado onde cheguei.”
O Brasil esqueceu-se do Brasil
Com
o tempo, o mundo primeiro, e o Brasil depois, foi reconhecendo esse
trabalho que Atala fez, de recuperação de ingredientes, e, cada vez
mais, dizer Atala era dizer Amazónia. O que é que o chef procurou na
Amazónia? Uma cozinha brasileira original, pura, indígena? Os
ingredientes que representam o Brasil antes da colonização pelos
portugueses? Uma Amazónia idealizada?
“Uma das palavras
mais conhecidas do mundo é Coca-Cola. O mundo inteiro conhece a garrafa,
o mundo inteiro tem a memória de um sabor. Palavra tão conhecida como
essa é Amazónia. O mundo inteiro tem uma imagem, ninguém conhece o
sabor. Eu tinha um elemento internacional para trabalhar e usei. O
Brasil, mais uma vez, pegou e olhou só lá de fora, e depois trouxe aqui
para dentro. Foi o Brasil que se esqueceu de falar do próprio Brasil.”
Mas
Amazónia, sendo uma palavra tão forte, colou-se a Atala, e ficou mais
difícil explicar que o seu trabalho passa por outros ingredientes que
existem no Brasil e que não vêm necessariamente da Amazónia. “Uma das
primeiras frutas que trabalhei neste restaurante, e que ficaram famosas,
chama-se ‘cambuci’. As pessoas falavam ‘nossa, essa é uma fruta da
Amazónia’. Mas nós temos um largo em São Paulo que se chama Largo do
Cambuci. Essa fruta é daqui, de São Paulo. Há é uma miopia colectiva, as
pessoas acham que tudo é Amazónia e querem esquecer o resto do Brasil. É
natural que o mundo ficasse fascinado pela Amazónia, como deveria ser
natural o Brasil ser fascinado pelo Brasil, e não pelas notícias que vêm
de fora.”
Alex cresceu, tornou-se grande, o mundo já fala da
Amazónia, o Brasil também. E de repente todos querem ser iguais a ele.
Como se faz?, perguntam-lhe. “Há chefs amigos que vêm aqui falar comigo:
‘Puxa, como é que ninguém me reconhece, você conseguiu tudo, eu não
consigo nada.’ Só falta falar que ele cozinha melhor do que eu”, diz,
soltando uma gargalhada. “E eu digo para ter calma, porque às vezes não é
só cozinhar bem, é passar uma mensagem bem. É importante entender isso.
É preciso uma mensagem que acrescente e que seja adequada ao momento
que você está passando.”
fazê-lo no momento certo. “A Espanha enviou essa mensagem para o mundo
na hora que o mundo estava cansado de ouvir falar da cozinha francesa. A
cozinha francesa não estava em crise, o mundo estava era cansado de
França, França, França. Aparece um espanhol [Ferran Adrià] e toda a
atenção se vira para ele. O Brasil tinha muito boas cozinhas regionais, e
tinha chefs que faziam boa cozinha francesa ou italiana, e então
apareceu um cara fazendo cozinha brasileira. É natural que esse cara
fosse chamar a atenção. Agora, se outro cara quer chamar a atenção no
Brasil e vai fazer a mesma coisa que eu, ele não vai conseguir a mesma
atenção, vai conseguir metade. Mas se ele fizer outro trabalho que seja
autêntico ele vai ganhar essa atenção.”
E é preciso que apareçam
(como já estão a aparecer) essas outras vozes da cozinha brasileira —
até para garantir que Atala não se torna o pior inimigo desta, e que
tudo não começou e não acaba com ele. O problema é que hoje toda a gente
tem muita pressa, ninguém quer esperar. “A gente tem que conter as
nossas ansiedades, principalmente quando falamos de tempo e de cozinha. A
nouvelle cuisine foi uma moda passageira, durou uns 15 anos. O Ferran
Adrià é um fenómeno, mas ele começou a existir para o mundo no ano 2000.
As pessoas tendem a olhar a gastronomia com a velocidade que a Internet
quer. Mas ela é orgânica, é humana, é natural, tem o tempo dela. Essas
maturações vão acontecer.”
Muito aconteceu já no último meio
século, diz. “Houve a nouvelle cuisine, a onda da Espanha, o locavorismo
[comer os produtos que existem na região em redor, princípio defendido,
por exemplo, pelo Noma, de Redzepi, em Copenhaga]. Cinquenta anos, só?
São 50 anos de revoluções. Se nós conseguirmos só pegar na essência
desses 50 anos, sem evoluir, mas aplicando-a nos próximos 50, a cozinha
vai ser sensacional. Só que ela tem a possibilidade de continuar a
evoluir. Eu vou repetir: as pessoas têm miopias, tendem a olhar para
estas coisas como um ano, dois. ‘Ah, o Ferran Adrià já acabou, não tem
mais nada para falar.’ Vamos entender que estes movimentos são longos.”
É
altura de introduzir uma pequena provocação. Dias antes tínhamos
almoçado com Carlos Alberto Dória, gastrónomo, crítico, estudioso,
pensador e autor, juntamente com Atala, do livro Com Unhas, Dentes & Cuca – Prática Culinária e Papo-Cabeça ao Alcance de Todos
(editora Senac). E o que diz Dória? “Este movimento de renovação
gastronómica é pendular. Tem um momento de técnica e um momento de
ingrediente. Desde que fechou o elBulli [o restaurante de Adrià], vejo
uma orfandade internacional de chefs. Mas por que fechou? Porque cumpriu
o seu papel. Qualquer chef sabe hoje as técnicas que o Ferran usava.
Ninguém se diferencia mais por fazer espuma, isso morreu. Então, a
competição desloca-se para outro terreno e, depois do fenómeno Noma,
desloca-se para os ingredientes. Então você assiste a essa peregrinação
pelo Brasil de chefs como o Alex Atala, a Ana Luísa Trajano [do
restaurante Brasil a Gosto, também em São Paulo] e tantos outros, em
busca de coisas diferentes. Acho que é uma coisa que terá o seu momento e
passará. Não é possível você sustentar uma culinária à base de uma
descoberta por dia.”
Concorda, Atala? “Discordo, discordo,
discordo. Historicamente, a cozinha é evolutiva, nunca de maneira
ordenada, mas sempre evolutiva. A gastronomia nunca descartou nenhuma
das fases por que passou, nem de Carême [França, 1783-1833], nem de
Escoffier [França, 1846-1935], nem de Point [França, 1897-1955], nem de
Bocuse [França, 1926], nem de toda a nouvelle cuisine, e seguirá não
descartando nada nem ninguém. Pelo contrário, nós vivemos hoje um
momento mundial onde a gastronomia é cada vez mais generosa, menos
competitiva e mais aberta a receber informações da tecnologia ou da
antropologia, das ciências exactas e das ciências humanas, e isso faz
com que a gente viva uma cozinha de paz, de alegria, de sublimação, de
prazer. As pessoas tentam categorizar muito. É impossível.”
ingredientes se sobrepõem às técnicas. “Porque nós no Brasil temos essa
riqueza. Como cada time de futebol, cada literatura, cada filosofia, nas
suas regiões ganha os contornos dessa região. Hoje, na América do Sul, a
gente tem uma efervescência de novos chefs trabalhando, todos com muito
boa técnica, mas todos muito debruçados no ingrediente, que é a nossa
maior riqueza. Diferente talvez da Europa, onde os ingredientes já são
todos conhecidos e a técnica é o caminho evolutivo.”
A diferença é
grande. “Se pensarmos nesta ideia de ir ao mato e encontrar os seus
próprios produtos, a Europa hoje conta, entre algas, verduras, legumes,
flores, cogumelos, umas 400 espécies selvagens diferentes. Num primeiro
levantamento que fizemos no Brasil, muito raso, sem grande estudo,
achámos entre oito e dez mil variedades com grande potencial. Só de
cogumelos talvez a gente consiga mais de mil. E estamos falando de um
terreno que foi muito pouco estudado ainda, de uma área que tem muitas
possibilidades. Os sul-americanos encontram hoje a sua melhor forma de
expressão através do ingrediente, sim, mas acho que essa é uma solução
para a América do Sul, não para o mundo.”
Carlos Alberto Dória vê
algumas dificuldades nesta estratégia. O que é hoje um ingrediente
“brasileiro”? “Os ingredientes têm uma história, são descobertos, são
esquecidos, redescobertos, transformados. Muitos chefs acham que a
mandioca brava, venenosa, é um produto natural. Não é. É um produto
desenvolvido pelos índios como defensivo agrícola contra os predadores.
Você pega os feijões, por exemplo. São brasileiros? Tinha brasileiros,
mas há os que vieram de África, da Ásia. Os portugueses fizeram uma
grande transacção internacional de ingredientes e as pessoas hoje
consideram-nos afectivamente. A manga, que muita gente considera
brasileira, é indiana.”
É por isso, defende o especialista, que a
ideia de uma culinária nacional, indígena, “está fora do seu tempo,
porque não existe mais nação”. “Claro que há uma tentativa de fazer uma
cozinha étnica, mas duvido desse projecto. O [chef peruano] Gaston
Acúrio, há dois ou três anos na feira San Sebastian Gastronomika, disse
que ia fazer uma apresentação mas não trazia nada do Peru. Disse: ‘Os
meus colegas vieram cheios de produtos, e eu do Peru trouxe o ceviche,
mas o ceviche onde está? Não o trouxe na mala, ele está na minha cabeça.
Vou pegar nos vossos peixes e fazer o ceviche’.”
Tucupi e arroz com feijão
No
Brasil, a grande força tem sido a Amazónia — e agora, cada vez mais, o
cerrado, que tem uma diversidade de produtos provavelmente mais do que a
Amazónia. Mas há, segundo Dória, uma questão de “legitimidade” e de
“legibilidade” desta nova cozinha brasileira. Para explicar esta ideia, o
melhor é recorrer a um texto do próprio: “Legitimidade se refere a algo
‘brasileiro’, a exemplo o tucupi [líquido retirado da mandioca, usado
em vários pratos da culinária amazónica], mesmo para quem jamais o tenha
experimentado — o que é a maioria da população brasileira. Afinal, é
nativo e suficientemente enraizado em parcela do nosso vasto território.
Legibilidade diz respeito a algo que, nativo ou exótico aclimatado, é
reconhecido claramente como ‘brasileiro’, a exemplo do arroz com feijão
que todo o mundo conhece.”
No mesmo texto, intitulado Legitimidade e Legibilidade da Gastronomia Brasileira,
no qual analisa estes dois caminhos seguidos por diferentes chefs (o da
comida mais popular e o da mais exótica), Dória refere-se a Atala.
“Alex Atala, há anos, tem feito um esforço hercúleo para se apropriar da
‘amazonidade’ em nossa culinária de ponta. Para tanto, lança mão do
tucupi, jambu [uma erva que provoca uma dormência na boca], priprioca
[erva parente do junco e do papiro], formigas. Sabemos identificar o
quanto de simbólico há nisso tudo, mas só o tucupi é ‘popular’ na
Amazónia, a priprioca nem sequer é comestível para os caboclos. A
formiga — reminiscência das culinárias indígenas de norte a sul do país —
hoje ocupa o papel de metonímia da culinária amazónica.”
explica Dória à Revista 2. “Se perguntar para as pessoas aqui em São
Paulo, ninguém conhece tucupi — é um ingrediente que não tem uma
legibilidade fácil. Só o pessoal de uma camada gourmet aceita
experimentar essas coisas mais estranhas.” E mesmo assim as resistências
são grandes, tanto à estranheza como à recuperação de comidas mais
populares. Dória conta que Mara Sales, que recentemente transferiu o seu
restaurante Tordesilhas, do outro lado da Avenida Paulista para a
selecta zona dos Jardins (onde fica a maioria dos restaurantes mais in
de São Paulo), se queixava que alguns dos clientes nesta nova
localização achavam que “farinha de mandioca é comida de pobre”. “E ela
tinha mudado apenas quatro ou cinco quadras [quarteirões]. Estamos a
falar de um pedaço de cidade mínimo, mas o facto é que a maioria das
pessoas não atravessa a Paulista.”
Falemos então de formigas.
Para
Atala, elas são muito mais do que a apropriação simbólica da culinária
indígena. Elas são “deliciosas”. E são uma forma de nos pôr a pensar em
questões de sustentabilidade e do futuro da alimentação. “A reacção das
pessoas é de fascínio”, conta o chef. “Eu só sirvo uma formiga, a saúva,
e ela é realmente uma delícia. Vem uma por prato, com abacaxi gelado, a
pessoa come e é uma explosão de sabor. Acho que quando se encontra um
insecto que seja realmente delicioso é justo usá-lo, mas não é por isso
que vou pegar em todos os insectos e colocá-los no meu restaurante.”
Quanto
aos preconceitos que possam existir, tem argumentos para os derrubar.
“Hoje o mundo tem fazendas dedicadas à produção de insectos, que são
vendidos para fazer rações para animais. Porque é que animal pode comer e
a gente não pode? Porque é que é aceite como ração e não como
alimentação, quando alguns insectos têm dez vezes mais proteína que um
pedaço de carne? O Food and Drug Administration norte-americana aceita
86 partes por milhão de insectos na manteiga de amendoim e 74 partes por
milhão no chocolate. Nós comemos insectos.”
argumento que já repetiu muitas vezes. “Mas vamos imaginar que comer
insectos é uma porcaria. A gente não come merda, pois não? A gente não
come vómito, pois não? O que é o mel? É vómito de abelha. Existe um
exercício de abrir as nossas cabeças para olhar essas possibilidades de
outra maneira. Nós comemos mel, e mel é secreção de insecto. Devia ser
nojento para a gente, mas é delicioso. Existem possibilidades, sim, e
elas não podem ser descartadas. Principalmente quando a gente fala do
teor de proteína e do número de vidas que podem ser salvas por essa
possibilidade.” Quanto ao aspecto dos insectos, “sim, é feio, tão feio
quanto o do camarão ou do caranguejo”.
Estávamos a falar de
formigas, e agora estamos a falar de formas de ajudar o mundo. Porque é
isso que se espera também hoje de um chef que uma revista como a Time
colocou entre as 100 figuras mais influentes do ano passado. E Atala tem
essa preocupação. O uso que faz dos ingredientes é também uma forma de
ajudar produtores e populações. “Usando estes ingredientes hoje no
Brasil e na América do Sul, e principalmente se os conseguirmos exportar
para a Europa — porque há grandes produtos que já saíram das Américas
—, podemos ajudar as pessoas, a cultura, pode existir um benefício
social, económico, ambiental e cultural.”
"Ninguém acerta à primeira"
Mas
há também o reverso da medalha. Como aconteceu com a quinoa peruana, o
sucesso de um produto no mundo pode significar que o seu preço sobe e
que as populações que o usavam como base da sua alimentação deixam de
ter acesso a ele. “É facto. A alimentação é uma actividade vital, a
maior rede social do mundo não é o Facebook, é a cozinha, e é natural
que ela tenha defeitos. Mas a gente não pode fazer dos defeitos a razão
da nossa vida. Sempre vai haver problemas. A Internet tem problemas.
Vamos tirar a Internet das nossas vidas? Ninguém acerta à primeira. Eu
nunca fiz uma receita e ela ficou pronta na primeira vez, nunca escrevi
uma carta e ela ficou pronta logo. A gente vai construindo através dos
erros, relendo, aprendendo.”
Reconhece os problemas. “Eu
nunca discordaria que o nosso modelo de mercado é escolher uma quinoa,
jogar para o mundo, e tudo o resto que ficou para trás, esquece. Mas
acredito que uma nova filosofia de cozinha tem de ser imposta, que é a
do extrair e devolver. Eu não posso ir só à Amazónia e tirar da
Amazónia, isso foi feito a vida inteira. Está na hora de devolver para a
Amazónia, e às vezes devolver não é só dar dinheiro. Às vezes, se você
der dinheiro, estará só aumentando os problemas sociais. Você precisa de
devolver tendo em atenção as necessidades de cada comunidade, tribo ou
região.”
Mas acredita no futuro. “O mercado é um problema mas não
podemos fazer dele o nosso vilão nem o nosso deus. Se o mercado fosse a
maior força na minha vida, eu nunca faria cozinha brasileira. Comecei a
fazer cozinha brasileira e as pessoas chamavam-me louco. Hoje o Brasil
inteiro orgulha-se disso e sinto-me feliz. Então vale a pena. [Com os
projectos sociais, de trabalho com produtores] a gente não mudou a vida
de uma família ou de dez famílias, a gente mudou a vida de uma região
inteira. Devolveu a alegria, deu um horizonte a quem já achava que não
ia ter mais. Eu acredito que a cozinha bem exercida é uma ferramenta
social muito importante e que a gente vai aprender a lidar com isso.”
Atala deposita a esperança de que continuará a trabalhar para manter a
cozinha brasileira viva — vai ser melhor que a actual. “Sou cozinheiro
há 27 anos e quando comecei a ser cozinheiro já não era só isso, já era
preciso ter competências administrativas, saber gerir uma cozinha.
Nesses anos, uma série de outras coisas aconteceram: começámos a dar
aulas, a escrever livros, a falar na televisão, a usar o computador.
Tudo isso era novo para a gente. Assim como a nova geração aprendeu a
usar o computador melhor que nós, vai também aprender a usar os
ingredientes melhor do que nós, e a geração a seguir melhor ainda. Esta é
uma evolução que a cozinha pode ter: mais consciência, mais sabedoria,
uma acção um pouco mais profunda no acto de não somente servir comida.”
Estamos
novamente a falar de um tempo longo, o tal tempo que não é o da
Internet e o da pressa dos chefs que querem a fama de um dia para o
outro. Mas há um tempo muito longo — mais de 500 anos — de que ainda não
falámos. É altura de perguntar a Atala onde fica a influência
portuguesa em toda esta história da renovação culinária brasileira.
Afinal,
entre os ingredientes que os portugueses trouxeram e levaram de um lado
para o outro do mundo, incluindo o Brasil, estão alguns dos que hoje
enchem de orgulho os brasileiros. E entre as técnicas culinárias (quando
os conquistadores chegaram, os índios usavam um número reduzido de
técnicas) estão muitas introduzidas pelos portugueses. Nesta busca de
uma Amazónia idealizada — o “discurso de sedução” que hoje os chefs têm
de ter, segundo Dória — onde fica Portugal?
Ouvimos primeiro o
escritor. “Num certo sentido, somos uma continuidade da cozinha
portuguesa. A cebola, o alho, o refogado, são heranças portuguesas. No
Nordeste, os embutidos [enchidos] são muito próximos dos dos portugueses
e quando os chefs trabalham certo repertório aproximam-se mais de
Portugal. Mas o diálogo com Portugal faz-se mais com a cozinha popular
brasileira do que numa linguagem mais moderna. A ênfase é mais na
tradição portuguesa do que na inovação portuguesa.”
Sim, mas e o
passado, a história? De certa forma é injusto fazer esta pergunta a
Atala, que tem continuamente reconhecido essa influência portuguesa
(faz, inclusivamente, um “à Brás”, usando palmito). Mas o facto é que,
para o mundo, o que fica é a palavra Amazónia. “Concordo em parte que o
Brasil talvez não reconheça a influência portuguesa nas nossas cozinhas,
sobretudo em algumas cozinhas regionais. Fazem-se doces em calda em
Minas Gerais, está na cara que isso é uma influência portuguesa.”
sua gastronomia reconhecida internacionalmente, defende que “os
discursos devem ser amplos”. “Talvez nos últimos anos a Espanha tenha
ofuscado muita coisa de Portugal. Mas, por exemplo, o ceviche não é
peruano, vai do Chile ao México. Vamos brigar com o Peru, ou vamos
agradecer ao Peru por ter levado o ceviche para o mundo porque todos nós
seremos reconhecidos amanhã? Vamos brigar com a Espanha porque ela
roubou o brilho a alguns ingredientes portugueses, ou vamos imaginar que
esses ingredientes reconhecidos geram mercado para Portugal? Vamos
ficar com raiva da Amazónia porque a Amazónia brilhou, ou vamos querer
aproveitar isso, esse brilho que a Amazónia tem, e ajudar o cerrado
brasileiro, o pantanal, o Sul?”
Que “é preciso dar brilho à
cultura gastronómica portuguesa”, é uma ideia com que concorda. “Estou
falando dos peixes, dos vinhos, de todo o universo que vocês têm.
Portugal tem chefs excepcionais, sou grande fã, desde chefs mais jovens
como José Avillez, até outros da minha geração, como Vítor Sobral, você
vai encontrar uma diversidade de qualidade de cozinha incrível em
Portugal. Ingredientes, eu não preciso nem falar. Acho que já é
indubitável que um dos melhores peixes do mundo, se não o melhor, está
na costa portuguesa. Os vinhos também, já ninguém mais duvida. É só um
não se afligir com o brilho dos outros e estar seguro de que a qualidade
do produto vai triunfar.”
Deixa um conselho: ser genuíno. “Se
Portugal tentar fazer igual à Espanha, não consegue. Mas eu sou muito
crente nessa cultura gastronómica e acho que vai vir o momento do
reconhecimento. Tem de existir. Até porque a imprensa é curiosa, precisa
de novidades. Se num momento mais ninguém quis ouvir falar da França e
quis ouvir falar de Espanha, e se num momento cansou um bocadinho da
Espanha e quis ouvir a Dinamarca, Portugal está na fila, não sei se em
primeiro, segundo ou último, mas está na fila.”
Ele sabe, talvez
melhor que ninguém, o que é a angústia de buscar o reconhecimento. Tal
como sabe o que é a angústia de estar no topo e, no meio da constante
pressão mediática, perguntar-se para onde seguir caminho. “Isso cria
todo o tipo de angústia”, reconhece, sorrindo. “O Joel Robuchon chegou
aos 50 anos e renunciou. Disse que não fazia mais comida, mas voltou, e
mais admirável ainda. O Ferran Adrià também. Eu desconheço um chef que
esteja hoje no auge da carreira e não flirte com essa ideia. Qual a
maior diferença entre Pelé e Maradona? Os dois eram bons jogadores. O
Pelé parou de jogar no melhor momento, o Maradona, o mundo assistiu à
decadência dele. Então o Pelé parece melhor. Todos os chefs que eu
conheço da minha geração… entre o fazer e o pensar, existe um mundo, mas
todos nós flirtamos com essa ideia um dia. E isso é fruto de a gente
achar que não vai ser capaz de manter o interesse dos outros. Todos
nós.”
Mas o sofrimento faz parte da festa. “É duro, é duro. Brasil e
Portugal nunca vão ser os melhores do mundo, mas temos de ter
consciência de que nunca fomos e nunca seremos os piores. Vamos sofrer
sempre, ou por razões económicas, ou porque Brasil é muito grande, ou
porque o vizinho pegou… a gente vai sempre sofrer um pouquinho, mas acho
que não é um trauma. Dá para ser feliz.”
via PÚBLICO
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