Uma carta escrita por 170 índios Guarani-Kaiowás, as vésperas da anunciada remoção determinada pela Justiça, da terra em que habitam, no Mato Grosso do Sul, recolocou em um destaque pungente o drama da questão indígena no país.
“Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui”.A morte precoce, aliás, tem sido uma companheira frequente dos Guarani-Kaiowás: quase mil, a maior parte deles jovens, se suicidaram nas últimas duas décadas. Outras dezenas vêm sendo assassinadas em ações que têm como pano de fundo o interesse pelas terras que habitam.
A Constituição Federal de 1988 abrigou o princípio da diversidade e alteridade e consagrou o direito congênito dos índios às terras tradicionais, determinando a demarcação delas em cinco anos. Vinte e quatro anos depois, o trabalho está longe de ser concluído - a demora vitamina enormemente os conflitos nos quais a morte dos índios é quase um atributo do cotidiano.
A grande polêmica formada pela demarcação da Raposa Serra do Sol e os gigantescos esforços necessários para remoção de invasores, tem mostrado a enorme resistência em cumprir a determinação constitucional.
Até mesmo a AGU, que deveria ser a salvaguarda dos indígenas, tutelados que estão pela União, chegou a editar portaria que reduziria na prática a aplicabilidade de vários direitos.
Como no Código Florestal, cuja proteção se pretendeu diminuir à custa do agronegócio, o álibi é o suposto desperdício com terras que poderiam estar sendo melhor aproveitadas economicamente.
Mas a ânsia pelo desenvolvimento e a ganância pelo lucro não podem justificar o desprezo pela sobrevivência e cultura dos índios. Não foi à toa que a Constituição Federal inscreveu como um dos objetivos da República, em seu artigo 1º, a promoção da dignidade humana.
Os índios, convém lembrar, não são estrangeiros nessa terra, pois aqui estavam quando nossos chamados descobridores aportaram. Foram quase dizimados no contato com o colonizador. Não teria sentido o genocídio continuar no contexto da democracia.
Desenvolvimento sustentável também deve significar a preservação da diversidade e da dignidade dos índios, pois afinal de contas representam o que é mais de genuíno em nossa cultura, mesmo quando pretendamos nos desfazer dela.
Independente dos rumos do processo judicial, cujas circunstâncias aqui não se penetra, é certo que a paulatina extinção dos povos indígenas não pode conviver com uma omissão social tão impactante.
Mortes estão acontecendo aos borbotões e o silêncio das autoridades, dos partidos e da mídia parece indicar que se trata apenas de pessoas dispensáveis ou inúteis.
Atual ícone dos pecuaristas, a atriz Regina Duarte, famosa por histórica intervenção eleitoral, disse recentemente que voltou a ter medo em Dourados.
Os Kaiowás, na outra ponta, demonstram que passaram desta fase: “Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo”.
* juiz de direito em SP e escritor. Ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
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