A maravilhosa aventura da selecção nacional de desenho na Amazónia
por Joana Stichini Vilela,publicado em 06 de Março de 2010
Comeram piranha, pegaram em jacarés e trouxeram centenas de obras de arte. No Verão há uma exposição.
Ao todo o grupo terá percorrido "o correspondente ao comprimento de Portugal", conta o especialista em ilustração científica - apenas um décimo do trajecto das viagens filosóficas dos exploradores do século XVIII que lhes serviram de inspiração. "Tiveram a sorte de estar lá mais de 10 anos", brinca. E essa não é a única diferença. Se há 300 anos se faziam expedições para desenhar animais e plantas nunca antes vistos na Europa, hoje desenham-se espécies que podem desaparecer a qualquer momento.
"Vimos coisas do outro mundo", diz, entusiasmado - incluindo três das "sete pragas da Amazónia", como lhes chamava Moacir: jacarés, enguias eléctricas e vários tipos de piranhas. "A diversidade que apanhámos num pequeno trajecto na Amazónia é superior àquela que encontramos na nossa costa toda", reforça. Um sonho para qualquer pessoa, mesmo, como acabou por acontecer, para aquelas que são "101 por cento urbanas". Mas já lá vamos. Para já, o objectivo do projecto: retratar a Amazónia através de 25 olhares e sensibilidades diferentes. Depois, mostrar o resultado ao grande público, numa exposição prevista para o Verão.
Riscadores
O projecto "Grupo do Risco" nasceu há três anos, com uma expedição às Berlengas. O nome é uma homenagem à Casa do Risco do Real Museo e Jardim Botanico da Ajuda, a primeira escola de desenho científico portuguesa, onde se formaram os "riscadores" das viagens ultramarinas do final do século XVIII. Há 10 anos, Pedro Salgado esteve na Amazónia. E há 10 anos que queria lá voltar. Mostrou aos alunos do mestrado de Belas Artes os desenhos de campo feitos por lá. Eles incitaram-no a organizar nova expedição. Apesar do avanço tecnológico em áreas como o vídeo e a fotografia, nada substitui a ilustração científica, garante. "O que faz a fotografia com 34 pedaços de uma concha? No desenho podemos reconstruí-la, mostrar exactamente o que queremos e omitir o que não interessa."
Mais de metade dos 25 aventureiros são antigos alunos do professor. Alguns são biólogos, outros pintores e designers. Juntos fazem uma espécie de "selecção nacional" do desenho científico, assegura. O outro terço da equipa é multidisciplinar: fotógrafos profissionais, como Luís Quinta, dois médicos (um deles também ilustrador), um historiador e um professor universitário de desenho. Os últimos a entrar foram o designer Henrique Cayatte, convidado para ser comissário da exposição, e a mulher, a jornalista Maria Flor Pedroso, que apresentava o programa "As Escolhas de Marcelo", na RTP. "Ele achou o projecto fantástico e decidiu vir. Desenhava da perspectiva dele: sandálias, barcos, retratos", conta Salgado. "Ela entrevistou toda a gente. Pôde fazer o retrato distanciado do que estava a acontecer." Apesar de ser uma das tais pessoas "101% urbanas". "Só uma aranhinha já as punha nervosas. Estavam cheios de medo. Depois acharam fantástico."
Todos os dias o grupo saía do "Dorinha" ainda de noite e dividia-se por três canoas. Começava a exploração. Os guias de origem índia conduziam-nos pelos afluentes mais estreitos. "Habituados aos turistas que só querem beber caipirinhas, estavam felicíssimos a mostrar-nos aquilo que sabem. Pareciam meninos a trazerem-nos coisas para vermos", conta. Depois divertiam-se a assistir ao espectáculo: dezenas de adultos a sacarem dos blocos, das lupas, das máquinas fotográficas e a debaterem quem ficava com o quê para desenhar.
A temperatura atingia os 30 e muitos graus, a humidade rondava os 90 por cento. Um lenço de pano era essencial para limpar o suor das mãos. Uns faziam esboços em 10 ou 15 minutos, com traços largos e livres. Outros preferiam as ilustrações precisas, mais próximas do desenho científico. Aí levavam os exemplares para bordo. Salgado passou uma tarde a desenhar a grafite um misterioso peixe que o capitão lhe pescou. Sara Simões, de 29 anos, a benjamim do grupo, preferia as plantas. "São um modelo mais disponível", explica. Fez três cadernos, um dos quais com desenhos mais trabalhados como as aguarelas: o capim e as bromélias aqui ao lado. Concluiu o primeiro em duas horas e o segundo em três. Ainda teve tempo para um encontro imediato com uma preguiça, que lhe apertou - lentamente, claro - a mão com tanta força que foi preciso ajuda dos companheiros para a tirar.
Um ic19 tropical
Se na primeira semana andavam todos lambuzados de repelente - "não metíamos a mão na água porque havia piranhas, não enfiávamos os pés na terra porque havia jacarés..." - na última já mergulhavam na água até ao pescoço para empurrar canoas, já passavam jacarés de mão em mão e seguravam piranhas para as desenhar. O Indiana Jones do grupo era Marco Correia, um designer de 36 anos com vocação para a biologia. "Uma das dificuldades que tivemos desde o início foi convencê-lo a não agarrar tudo, porque havia coisas mortais", recorda Pedro Salgado. O destemido ilustrador confirma: "Para mim, tudo o que é diferente é alvo de investigação". Enfiava os braços dentro de troncos, metia-se em buracos, por pouco não agarrava uma perigosíssima cobra coral em tons de vermelho. "Vi-a dentro de água e perguntei aos guias se era venenosa. Eles disseram que sim. Insisti três vezes. Ainda bem que não a apanhei...", conta. Ainda assim conseguiu levar uma tarântula para bordo e tornar-se especialista em capturar jacarés.
"Hoje vamos apanhar jacarés", atirou certo dia o capitão Moacir. "Os jacarés apanham-se à noite." Por causa dos focos de luz, ficam com os olhos vermelhos, explica Pedro Salgado. "Havia sítios que pareciam o IC19 visto de trás: luzinhas vermelhas a perder de vista." Perfeito para recolher material. O truque é agarrá-los por trás pelo cachaço. Com força, claro. Depois apanha-se a cauda. "Eles não se mexem como um cão ou um gato", acrescenta. A maior parte tinha cerca de 50 cm. Marco apanhou um de 1,5m. "Tinha uma energia incrível. Ficava quieto e depois mandava cada descarga... É incrível como estando lá acabamos por perder o medo."
Nos próximos anos o Grupo do Risco quer continuar a seguir as rotas dos descobridores portugueses. O problema é o financiamento. Para a viagem à Amazónia bateram a "20 ou 30 portas", mas não conseguiram patrocínios. A Universidade Autónoma entrou com 5000 euros, cada aventureiro desembolsou 3000 euros. Para já, a prioridade é preparar a exposição e o livro sobre esta expedição. Depois, começam a trabalhar na próxima. Destino: Moçambique.
via Jornal i
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