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O Messianismo Existencial Xerente

por Rinaldo de Mattos  


O termo messianismo vem dos judeus e refere-se à esperança bíblica Vétero Testamentária da vinda do Messias. Às vezes messianismo é confundido com milenarismo, o qual se refere, por sua vez, à crença num reino milenar de paz e justiça que Jesus haverá de implantar na sua volta à terra[1]. Na Antropologia, o termo se refere a qualquer movimento histórico de caráter religioso (único ou freqüente) que acontece, no tempo e no espaço, na experiência de um povo. É um movimento que surge geralmente em tempos de crise existencial, social, política ou econômica e é sempre comandado por um líder carismático. Messianismo é também um movimento de revitalização, geralmente acompanhado de rituais, cerimônias e até deslocamentos geográficos[2]. Onde não se puder detectar um movimento dessa natureza, como fato histórico, diz-se que o grupo não é messiânico. Desse modo, falando-se de índios do Brasil, teríamos povos messiânicos e povos não messiânicos.
Neste artigo, porém, queremos nos reportar a um tipo de messianismo que tem configuração mais universal e está embutido na própria cultura dos povos. A esse fenômeno, chamamos aqui de “messianismo existencial”. Existencial, porque, mesmo não se expressando em movimentos surgidos no tempo e no espaço, ele faz parte da crença de cada povo, determina a sua visão de mundo, sua filosofia de vida, sua índole, seu comportamento, e é exteriorizado, ainda que sutilmente, nos momentos apropriados, de modo absolutamente observável.
Até a presente data, ao que se sabe, não foi feito ainda um estudo mais abrangente sobre a presença do messianismo existencial nas várias cosmovisões indígenas brasileiras. Comparando, entretanto, o Xerente, grupo da família Jê, com o qual trabalhamos, e o grupo Tupi Guarani, por exemplo, cujo messianismo já se encontra exaustivamente descrito,[3] podemos identificar dois tipos diferentes de messianismo: Messianismo Histórico e Messianismo Existencial. O primeiro, baseia-se na crença de que algo haverá de acontecer, no futuro, trazendo a felicidade, de alguma forma perdida, no passado. O segundo, baseia-se numa expressão de lamento, num sentimento de perda, de nostalgia e até de saudades por uma felicidade originalmente projetada, mas, por alguma razão, frustrada. As distinções entre esses dois tipos de messianismo, poderiam ser assim descritas:

Messianismo Histórico: O messianismo histórico é eminentemente escatológico. Sua expectativa está voltada para o futuro e produz povos esperancistas[4] com atitudes religiosas geralmente positivas. Por ele, o povo espera que a idade áurea, perdida, no passado, volte a se instalar no futuro. Povos messiânicos históricos vêem a passagem do tempo em três eras: 1) A era mitológica: uma idade primeva, áurea, paradisíaca, onde tudo era bom; 2) a era da realidade presente, onde algo aconteceu que trouxe a dor e o sofrimento ao mundo e 3) a era messiânica, que será uma reedição da era primeva ou a reconquista, de alguma forma, das condições paradisíacas da era mitológica. Povos esperancistas são mais receptivos, mais propensos a inovações, mas também são mais vulneráveis. No Brasil, o exemplo clássico de messianismo histórico seria o povo Tupi Guarani, com a crença na existência da “Terra Sem Mal”. Crença, esta, que tem causado, inclusive, movimentos de migração nas direções interior/litoral, litoral/interior e, mais recentemente, a volta do ciclo interior/litoral.[5]

Messianismo Existencial: O messianismo existencial é eminentemente preterista. Seu impulso está voltado para o passado e produz povos fatalistas com atitudes religiosas geralmente negativas. Por ele, o povo lamenta a perda das condições paradisíacas da idade áurea, mas aceita o “status quo” como um tipo de fatalidade (ou castigo) sem admitir qualquer providência futura para a reconquista da felicidade perdida. Para esses povos, a história humana possui apenas duas eras: A era mitológica: uma idade primeva, áurea e paradisíaca, e a idade real, onde se convive com a dor e o sofrimento. Povos fatalistas são geralmente menos receptivos, oferecem maior resistência a inovações, mas são menos vulneráveis. Eles se resguardam melhor dos contatos indiscriminados, como também duvidam mais das intenções dos invasores. Os Xerente seriam um bom exemplo de messianismo existencialista.
Mas, a essa altura, alguém poderia perguntar. Considerando-se os Xerente um povo messiânico existencialista, portanto fatalista, sem qualquer esperança para o futuro, onde estaria a sua manifestação messiânica? Para entender esse fenômeno, é preciso conhecer alguns aspectos da cosmovisão Xerente:
A Cosmovisão Xerente:

1. O acervo mitológico:
Toda a cosmovisão Xerente está “arquivada” numa série de lendas da mitologia que explicam a origem das coisas. Há lendas sobre os dois heróis míticos – o sol e a lua, sobre os fenômenos da natureza, sobre a existência do bem e do mal, sobre a razão da dor e do sofrimento, sobre as divisões clânicas, os produtos da roça, os bichos do mato, a supremacia econômica do branco em relação ao índio, e tantas outras. Todo o conjunto de idéias, filosofia de vida, cosmogonia, etc. que compõem a cosmovisão Xerente, até mesmo a sua índole, vêm dessas lendas. Geralmente os Xerente não dão respostas acabadas para perguntas sobre os fenômenos da vida. Eles se reportam às lendas da mitologia. Se alguém chegar numa aldeia Xerente, por exemplo, e perguntar porque as pessoas morrem, ele não receberá uma resposta conceptual, enunciada numa proposição. Ele irá ouvir uma história da mitologia que explica a razão da presença da morte na experiência humana.
As histórias que compõem a “biblioteca lendária”, são tidas como acontecidas num tempo passado, numa era mitológica onde tudo era bom. Dentre as várias lendas, as que determinam a experiência existencial Xerente, são as referentes ao sol e a lua ‘Bdâ e Wairê’, como veremos mais adiante.

2. A visão de tempo linear voltada para o passado:
Como as lendas da mitologia falam de coisas que aconteceram no passado (quando as mesmas estavam tendo a sua origem) o Xerente dá primazia e se reporta invariavelmente ao passado, quando se trata de defender os seus direitos, estabelecer princípios de vida, explicar as suas experiências existenciais, etc. Há duas palavras específicas usadas para se referir a essa era primeva: A palavra ahâmã ‘antigamente’ e a palavra, ou melhor, a expressão æsnãkrta hawi ‘no começo’. Esta última, inclusive, carregada de muito carisma. É por isso que o povo Xerente tem verdadeira veneração pelos velhos, a quem chama de æptokrda ‘envelhecidos’, os quais são os guardiães da cultura.
A cerimônia principal Xerente, por exemplo, a festa anual do Dasæpê[6] tem justamente o sentido de “sintonizar” o grupo com as heranças do passado. A idéia é a de que, realizando a festa, o povo se sintoniza com a vontade de Bdâ – o deus sol, pratica aquilo que ele deixou como legado cultural, e assim se sente bem. Por isso, quando algum cataclismo acontece, os mais velhos costumam dizer que isso aconteceu como castigo de Bdâ pelo fato de os Xerente estarem abandonando o cerimonial do Dasæpê.
É interessante notar, inclusive, como essa cosmovisão tem o seu efeito direto também sobre o aspecto econômico. De frente para o passado e caminhando, como que de costas, para o futuro, o Xerente é essencialmente imediatista. Todas as suas atividades e preocupações econômicas visam exclusivamente a sua sobrevivência no presente. Ele caça para hoje, produz para hoje, realiza todas as suas transações econômicas e todos os seus compromissos sociais visando a sua sobrevivência imediata, sem qualquer previsão para o futuro. É por isso, talvez, que o Xerente tem se mostrado, via de regra, apático, desinteressado e “desconfiado” em relação a projetos vindos de fora, que contenham muita previsão para o futuro, mas pouca proposta para o aqui-e-agora. Ou, por outro lado, talvez seja também por isso que o Xerente tem a tendência de abraçar, de pronto, qualquer oferta que traga vantagens imediatas, sem se preocupar com as suas conseqüências para o futuro...

3. O animismo:
A crença Xerente é eminentemente animista, como se pode verificar pelas características a seguir:
a) Para o Xerente, tudo tem vida. O homem, os animais, as pedras, as árvores, as águas, toda a natureza têm vida, fala e se comunica;
b) Há interação entre corpos celestes e corpos terrestres; entre humanos e animais e entre seres animados e inanimados. Astros do céu, humanos, bichos do mato, aves, acidentes geográficos, são confundidos uns com os outros e transformados uns nos outros nas lendas da mitologia. Para citar alguns exemplos, o Sete Estrelo (Plêiades) eram sete irmãos que, através de uma história cheia de lances inusitados, se transformaram em astros do céu e lá se instalaram; um morro muito conhecido aqui na região, que fica entre as cidades de Miranorte e Guaraí, à margem da BR 153, era gente (uma velhinha cega, dizem) no passado mitológico; a maioria dos bichos do mato era gente, no mesmo passado mitológico;
c) Há interação entre o sobrenatural e o natural, com eminente influência do primeiro sobre o segundo, como veremos mais adiante;
d) Há um grande número de espíritos habitando matas e rios, os quais exercem influência sobre a vida Xerente, o que também veremos mais adiante;

4. As forças sobrenaturais:

a) Bdâ e Wairê:
Como se disse antes, Bdâ e Wairê (o sol e a lua) formam a dupla de heróis culturais da crença Xerente. Ambos viviam na terra, em forma humana, na era mitológica, e tinham poderes sobrenaturais determinantes. As lendas dão conta de que todas as coisas provêm de Bdâ. Ele é o criador de tudo. Nas lendas Xerente, nada fica a critério da iniciativa e criatividade do homem. O índio nada cria, nada inventa, nada desenvolve. Ele recebe tudo pronto e acabado das mãos de Bdâ. Assim, para o Xerente, toda a sua cultura, suas divisões clânicas, seus cânticos, seus rituais e cerimônias, suas armas de guerra, seu artesanato, tudo enfim, foi entregue e “deixado” ao povo, por Bdâ, exatamente assim como tudo é. Há uma expressão clássica na língua Xerente para se referir a esse fenômeno, que é repetida sempre que se fala das origens: Waptokwa Zawre dat wam rmå mnõ ‘As coisas que Deus “deixou” para nós’.
As lendas contam que depois que Bdâ e Wairê prepararam tudo de que o povo precisava, eles reuniram os índios para se despedir. Num evento marcado por cânticos, discursos, etc. Bdâ e Wairê se despediram do povo, subiram ao céu e lá se instalaram. De lá, eles assistem os índios, a uma certa distância, e esperam que estes cumpram o seu destino e conservem tudo que lhes foi deixado. Bdâ e Wairê têm pouca ou nenhuma influência no dia-a-dia do índio e só intervêm na vida do povo nos momentos cruciais e nos grandes cataclismos.
Dos dois heróis míticos, como já se pode deduzir do que foi dito até aqui, o mais importante é Bdâ, o sol. Bdâ é chamado também de Waptokwa Zawre ‘nosso grande pai’, ou simplesmente Waptokwa ‘nosso pai’[7]. Waptokwa é também o termo referencial para pai, e é usado, de forma especial, para certas pessoas dignitárias, como o presidente da FUNAI, por exemplo, e outros, ou para qualquer pessoa especial, do sexo masculino[8], que tenha beneficiado os índios, com certa notoriedade. Bdâ é tido como inteligente, bom, esperto, poderoso, “milagreiro”, às vezes irônico, mas que faz tudo certo, procurando sempre o bem-estar do povo naquilo que faz. Na fala comum, diária, Bdâ é referido mais como Waptokwa ou Waptokwa Zawre. O nome Bdâ, aparece mais nas lendas.[9] Mas, tanto um como o outro, são termos sempre precedidos pelo pronome honorífico, que indica respeito e precedência. Wairê, por sua vez, é tido como uma figura um tanto ridícula, que faz as coisas sempre erradamente, tem pouca ou nenhuma sabedoria, e é tratado, via de regra, com ironia por Bdâ. Nas lendas, ao dispor às coisas para o povo, Bdâ tem a primazia e é sempre ele quem toma as iniciativas. Wairê, vem em segundo plano, como um tipo de “companheiro” de Bdâ. Mas eles estão sempre e invariavelmente juntos, em todas as iniciativas, e são inseparáveis na sua caminhada. Ao dar origem às coisas, Bdâ sempre propunha aquilo que visava o bem-estar, a felicidade e a prosperidade do povo. Contudo, Wairê intervinha, logo a seguir, dando sugestões contrárias, as quais mudavam, implacavelmente, a natureza e o destino das coisas, trazendo inquietação, desconforto, dores e sofrimentos para o povo.
A subida de Bdâ e Wairê, com todo o seu ritual, seus cânticos, seus discursos, marca, na visão de tempo Xerente, o fim da idade mitológica, plena de felicidade (quando o povo gozava da companhia de Bdâ e Wairê) e dá início à era da realidade, cheia de desconforto, de dor e de sofrimento, com Bdâ e Wairê a uma certa distância, quase inatingíveis.
Após conhecer o cristianismo, num lance de sincretismo religioso, o Xerente associou o Deus dos cristãos (inclusive Jesus) a Bdâ, e associou São Pedro (companheiro de Jesus) a Wairê. Alguns, com raridade, associam Wairê a Maria, chamando-o(a) de “Nossa Senhora” e de Wazeparkwa ‘nossa mãe’. Outros, com mais raridade ainda, falam de Wazeparkwa como mãe de Waptokwa. De modo geral, entretanto, no sincretismo religioso, quando os velhos contam as lendas da mitologia, via de regra, eles alternam os termos, chamando a dupla de heróis culturais ora de Bdâ e Wairê, ora de “Nosso Sinhô” e Pedro.
Como o papel de Bdâ e Wairê não tem muito a ver com o dia-a-dia do índio, mas sim com as origens e com o destino das coisas, o Xerente não possui (pelo menos não pudemos identificar) qualquer tipo de culto a seus heróis culturais, não possui cerimônias ou ritos de expiação e não possui classes de sacerdotes. Nos grandes cataclismos, são os próprios pajés que cantam dirigindo-se a Bdâ para pedir o fim dos mesmos. Curt Nimuendajú, na sua pesquisa dos anos 30 e 37, fala de astros e planetas como intermediários de Bdâ, mas este dado não foi confirmado em nossas pesquisas e observações mais recentes[10].
Mesmo não intervindo diretamente nos afazeres diários dos índios, a dupla Bdâ e Wairê, especialmente Bdâ, é reconhecido como a grande força sobrenatural do Bem.

b) Os Espíritos: Na cosmogonia Xerente, as matas e os rios são a morada de uma multidão de Espíritos. No passado, conheciam-se várias classes de Espíritos habitando regiões diferentes da terra, ou mesmo fora dela.[11] Hoje são mais conhecidos os mrãi tdêkwa ‘donos do mato’ e os kâ tdêkwa ou kâm hã ‘donos das águas”. Os primeiros são os vigias permanentes das matas e controlam o fornecimento da caça e o plantio de roças, enquanto que os segundos são os vigias permanentes dos rios e controlam a dieta pesqueira. Há uma série de tabus que os índios precisam guardar para aplacar e controlar os Espíritos a fim de conseguir boas caçadas, boas pescarias e bons plantios de roça.
Como os Espíritos têm influência e controlam o dia-a-dia do índio, há uma classe de pajés (com cerimônias específicas de pajelânça) que servem como mediadores entre o ser humano e os Espíritos. Os pajés são tidos como conhecedores do mundo dos Espíritos e têm meios para controlá-los, aplacá-los e determinar-lhes procedimentos, visando livrar as pessoas de suas influências ou conseguir benefícios para as mesmas.
Os Espíritos são tidos também como os responsáveis pelas doenças. A crença é a de que eles podem fazer a pessoa adoecer através da introdução, em seu corpo, de pequenos objetos como ktå ka ‘pedrinha branca’, kbazi pre ‘fio vermelho de algodão’ wdê hu ‘pedacinho de pau’ e outros, os quais são introduzidos sempre pela instrumentalidade de um pajé. Uma vez introduzidos esses objetos em alguém, somente um outro pajé tem os recursos e o conhecimento para tirá-los. Assim, sempre que alguém adoece, dois pajés entram em cena. Um que é acusado de ser o instrumento para a introdução da doença no corpo do paciente e outro que é chamado para fazer o trabalho de exorcismo dos objetos.
A palavra pajé, na língua Xerente, é sekwa ‘dono ou responsável pela doença’, e leva consigo a conotação de poder espiritual. Há pajés que recebem o seu dom de mediunidade através de contato com os mrãi tdêkwa, e outros que o recebem através dos kâ tdêkwa. Parece que os intermediários dos mrãi tdêkwa são mais temidos e evitados, enquanto que os intermediários dos Kâ tdêkwa são melhor aceitos. Aos bons pajés, que são conhecidos apenas como curadores de doenças, os índios os chamam simplesmente de sekwa. Aqueles que são suspeitos também de servirem como instrumentos para a introdução de objetos no corpo do enfermo, são chamados de Smækâ tdêkwa ‘donos do feitiço, feiticeiros’. A palavra smækâ ‘feitiço’, é traduzida para o português, pelos próprios índios, pela palavra “porqueira”. O termo se refere não ao ato, mas aos próprios objetos que são introduzidos no corpo dos enfermos. Um sekwa pode ganhar grande respeito do povo, enquanto que um Smækâ tdêkwa é sempre temido, evitado e, em casos graves, até morto.
Entre os Espíritos, há um que causa sempre maior espanto para os índios. Ele é uma espécie de “lobisomem” com o corpo coberto de pelos, cabelos desarrumados, habita a mata e pertence à classe dos mrãi tdêkwa. Dizem que ele (eles – parece que são muitos e andam sempre em casais) mora nos troncos ocados das grandes árvores. A este, o Xerente chama de Hêpãrwawå ‘chefe dos Espíritos’. No sincretismo religioso, os Xerente associaram o Diabo (e Satanás) referido pelos cristãos, a Hêpãrwawå, a quem chamam também de “Cão”, por ser ele temido e tido como mau. Os Espíritos (ou pelo menos alguns deles) são chamados também de Dakahurkwa ‘Comedores de gente’, e o Xerente crê que eles podem tirar a alma das pessoas enfermas, como também se interpor no caminho dos que morrem, para devorá-los. Na cosmovisão Xerente, mesmo que não se propague abertamente, os Espíritos são tidos, todos eles, invariavelmente, como uma força sobrenatural maléfica. 

c) A origem do mal e dos infortúnios:
A presença do mal e de todos os infortúnios e frustrações, na experiência Xerente, tem, invariavelmente, dois responsáveis, tidos como culpados. Um é Wairê, que intervinha nos planos de Bdâ, dando sugestões contrárias, causando resultados desastrosos para o povo. Outro, é o próprio índio que, no momento da prova, quando Bdâ lhe oferecia qualquer bem ou lhe mostrava o caminho para a felicidade, ele contrariava a vontade de Bdâ, e perdia a chance. Em nenhum momento, Bdâ é culpado por qualquer mal existente no mundo. Quanto a Wairê, é bom que se diga, que mesmo sendo responsável pelos infortúnios, ele nunca é tido como força espiritual maléfica, por ser o companheiro inseparável de Bdâ. Para o Xerente, ele simplesmente agia precipitadamente e não sabia escolher o melhor, nos momentos decisivos.

d) A influência do sobrenatural na experiência Xerente:

Na sua cosmovisão, o Xerente vê o mundo sobrenatural dividido em duas partes: O mundo de Bdâ e Wairê, responsável pelas origens, pela natureza de vida, pelo destino do povo e pelos cataclismos (já que esses interferem no destino das pessoas) e o mundo dos Espíritos, responsável pela saúde, pela sobrevivência e pelas suas experiências emocionais e religiosas. Nas lendas, não há nenhuma interseção entre esses dois mundos.[12] Cada um deles exerce o seu próprio papel e tem a sua própria influência na vida Xerente. Essas influências são flagrantemente contrastivas. Bdâ e Wairê são responsáveis pelas origens, pela natureza de vida e pelo destino do povo, enquanto que os Espíritos são responsáveis pela saúde e pela sobrevivência. Bdâ e Wairê são sempre referidos no passado, enquanto que os Espíritos são referidos no presente; as ações e as escolhas de Bdâ e Wairê tiveram resultados irreversíveis, enquanto que a ação dos Espíritos pode ser alterada ou controlada; Bdâ e Wairê não possuem mediadores humanos, enquanto que os Espíritos possuem toda uma classe de pajés; Bdâ e Wairê são tidos como distantes, enquanto que os Espíritos são tidos como presentes; Bdâ e Wairê atuam apenas nos momentos de crise e nos grandes cataclismos, enquanto que os Espíritos atuam no dia-a-dia do índio; Bdâ e Wairê se relacionam com toda a sociedade, enquanto que os Espíritos se relacionam apenas com a classe dos pajés; Bdâ e Wairê são tidos como bons, enquanto que os Espíritos são tidos como maus; Bdâ e Wairê são respeitados (especialmente Bdâ) enquanto que os Espíritos são temidos. O seguinte quadro mostra melhor essa distinção:

INFLUÊNCIA DO SOBRENATURAL NA EXPERIÊNCIA XERENTE

BDÂ E WAIRÊ


ESPÍRITOS

- Origens e destino
- Atuação no passado
- Atos inalteráveis
- Ausência de cultos e mediadores
- Intervenção nas grandes crises
- Relacionamento com toda a sociedade
- Tidos como bons
- Respeitados
- Saúde e sobrevivência
- Atuação no presente
- Atos alteráveis (controláveis)
- Presença de pajés e rituais de pajelânça
- Intervenção no dia-a-dia
- Relacionamento com a classe de pajés
- Tidos como maus
- Temidos


5. A expressão messiânica Xerente:
Na ótica Xerente, como se depreende do quadro acima, as mudanças quanto as origens e o destino dos índios, são irreversíveis. Uma vez substituído o bem pelo mal (ou o bom pelo ruim) não há como se resgatar ou reaver o bem. Por isso, o Xerente é fatalista. Ele aceita as condições desagradáveis da vida como uma espécie de “castigo” de Bdâ, pela incompreensão do povo no seu relacionamento com ele na era mitológica. O castigo é tido como definitivo, por isso não há nenhuma perspectiva para o futuro, no sentido de se melhorar as coisas, nem qualquer iniciativa para se reverter a situação. Talvez seja por isso que o Xerente não tem classe de sacerdotes nem ritos de expiação. Ele conhece apenas duas eras. A primeva, boa, que não volta mais, e a presente, ruim, com a qual se tem que conviver para sempre.
Mas, o sentido messiânico (existencialista) da experiência Xerente se detecta no momento em que as lendas são contadas. As pessoas vão ouvindo tudo com muita atenção, até que o narrador chega ao ponto da história em que o próprio índio, ou Wairê, agem de modo indevido. Ali, alguém (especialmente as mulheres idosas) interrompe o narrador para lamentar aquele infortúnio, mostrando o quanto gostaria que as coisas tivessem saído de modo diferente. Há três lendas Xerente que servem, de modo especial, como exemplos para ilustrar o fenômeno. Segue a transcrição das mesmas, numa tradução livre[13]:

a) A lenda da morte:
No começo (æsnãkrta hawi), quando Bdâ e Wairê estavam caminhando juntos, Bdâ disse para Wairê: -O que é que vamos fazer para os nossos filhos? Vamos fazer isso, continuou. E, pegando um pequeno talo de buriti (uma espécie de palmeira {mauritia vinifera} cujo talo é leve como o isopor), jogou-o na água. O talo de buriti submergiu e imediatamente voltou à tona. Aí Bdâ disse: -É assim que vamos fazer. Nossos filhos vão morrer e logo tornar a viver. Daí Wairê retrucou: -Não, assim não vai dar certo. Assim os nossos filhos vão aumentar muito sobre a terra, não vai haver caça para todos e eles vão comer uns aos outros. É melhor assim, disse. E, pegando uma pedra, jogou-a na água. A pedra afundou e nunca mais voltou à tona. –Tambâ ‘fim da história’.
Quando essa lenda é contada e o narrador chega ao ponto em que Wairê lança a pedra na água, o “lamentador” interrompe o narrador e se expressa mais ou menos assim: - Ah, se ele não tivesse jogado a pedra, nós não estaríamos hoje chorando a morte de nossos parentes...! Feito o lamento, segue-se, geralmente, um momento de silêncio, até que o narrador retoma a palavra para concluir a história.


b) A lenda das viagens para o céu:

No começo, quando Bdâ e Wairê subiram para o céu, depois de passado muito tempo, os índios ficaram com muita saudade deles (obviamente de Bdâ). Então eles resolveram fazer caravanas para subirem e visitá-los lá em cima. Contam que o caminho era muito longo. Tão longo, que a pessoa saia da aldeia enquanto criança e, quando voltava, já estava velha. A caravana saia na direção do nascer do sol, rumo leste, e viajava, viajava, viajava até chegar ao “pé do céu”.[14] De lá, os índios subiam, com Bdâ, o sol, e alcançavam a abóbada celeste. Contam que os índios acompanhavam Bdâ, na sua caminhada, um dia após o outro, por muitos sois. Conversavam com ele, matavam a saudade e depois regressavam. Passado algum tempo, formava-se nova caravana e repetia-se a mesma viagem. Certa vez, Bdâ, já cansado de tantas visitas, recomendou que os índios, ao regressarem, quando pusessem os pés na terra, não olhassem, de forma alguma, para trás. Seguissem, sem demora, o seu caminho até a aldeia. Mas o índio é teimoso, diz o narrador. Foi só o povo colocar os pés no chão, todos olharam para trás. E o que viram? Lá estava “deitado” o grande mar, colocado entre a terra e o pé do céu. Nunca mais os índios puderam subir para visitarem Bdâ... Tambâ ‘fim da história’. A esta altura, vale lembrar que os Xerente não eram, originalmente, navegadores, e só vieram a conhecer a canoa mais tarde. Assim, a presença do mar, no extremo leste, era empecilho suficiente para a chegada até ao pé do céu. Agora, para o Xerente, o sol já não nasce mais por detrás do fim da terra, mas por detrás do fim do oceano. Com isso, toda a viagem para o leste termina sempre no mar. Nessa lenda, também, quando o narrador chega ao ponto em que os índios olham para trás e o mar se interpõe entre eles e Bdâ, alguém interrompe o narrador para lamentar o ocorrido, demonstrando tristeza, nostalgia, frustração e um desejo incontido de que gostaria que as coisas tivessem saído de modo diferente. Tenho ouvido vários lamentos, nessas ocasiões, quase todos em Xerente, mas, certa vez, ouvi um comentário, em português, de uma índia já idosa, que assim se expressou: “Índio é besta. Se fosse não tem olhado prá trais, até hoje nois tava subindo e descendo e visitando o nosso Pai...”


c) A lenda da prosperidade econômica:
No começo, contam que Bdâ tocou “borá” (uma espécie de buzina), no mato, chamando o povo. Houve uma grande correria na aldeia, os índios chamando uns aos outros, dirigindo-se para o centro da aldeia, pegando as suas armas, etc. para irem até a mata ver o que Bdâ tinha para eles. Em lá chegando, Bdâ mostrou-lhes (pela primeira vez) uma grande manada de gado (gado vacum) e disse- lhes: -Foi para isso que eu os chamei. Isto é para vocês. Então, contam que os índios começaram a resmungar, rejeitando a oferta e dizendo: -Não, esse bicho é muito fedido. Nós pensávamos que a oferta fosse porco do mato. Se fosse porco do mato, nós iríamos aceitar. Então, Bdâ lhes falou: -Bem, se vocês não querem, eu vou oferecer o gado para o “cristão” - o branco (especialmente o civilizado ao redor). Assim, quando vocês não encontrarem caça no mato, vocês vão dormir com fome. Mesmo assim, os índios foram embora, seguindo o seu caminho.
Passado algum tempo, Bdâ tocou borá, novamente, e chamou o povo. Desta vez ele mostrou uma manada de cavalos e jumentos e lhes fez nova oferta. Esses também eles rejeitaram, dizendo que o cavalo iria pular e derrubar o índio. Mas Bdâ voltou a insistir: -Não, fiquem com eles. Vocês vão poder colocar as cargas em cima deles e não vão precisar carregar as coisas nas costas. Nisso, apareceu um jovem que resolveu experimentar o animal e montou em cima dele. Dizem que ao primeiro pulo, o rapaz caiu. Daí todo mundo começou a resmungar: -Não, esses animais vão nos matar, eles vão nos matar, e foram embora. Assim, Bdâ resolveu dar os animais também para o civilizado.
Passado mais um tempo, contam que Bdâ tocou borá, novamente, e chamou o povo. Desta vez ele lhes ofereceu a espingarda. Depois de ouvirem o tiro, os índios se espantaram e preferiram ficar com o arco e a flecha. A espingarda foi, por sua vez, também entregue ao civilizado. E assim, através de sucessivas lendas, todas mais ou menos semelhantes, os índios tiveram, em primeira mão, a oferta também do ouro, da roupa e de tantas outras coisas, mas a tudo rejeitaram, deixando essas coisas para o civilizado.
Quando cada uma dessas lendas é contada, a interrupção do narrador, exatamente no ponto da rejeição e da perda, feita por qualquer ouvinte, é inevitável. Os lamentos são repetidos: -Ah, se os “antigamente” não tivessem rejeitado o gado, o índio hoje era fazendeiro; -Ah, se não tivessem rejeitado a espingarda, o índio não estaria passando fome; -Ah, se não tivessem rejeitado o ouro, o índio é que era rico, e assim por diante. Essas expressões de lamento indicam que o Xerente tem, no substrato de sua crença, um desejo profundo de vencer a morte e viver para sempre; que tem também um desejo profundo de superar os seus limites terrenos, subir até às alturas e alcançar o transcendental e que tem, ainda, um desejo profundo de ser plenamente feliz, próspero e realizado. Esses desejos, porém, pelo que tudo indica, jamais se traduzirão, no tempo e no espaço, em movimentos históricos, carismáticos, com qualquer tomada de iniciativa para se reconquistar o que se perdera. Mas é uma expressão autenticamente messiânica. Ela tende a indicar que o Xerente, em sua cultura e em sua cosmovisão, receberia, de bom grado, um líder carismático que surgisse, no tempo e no espaço, ou seja, um Messias, que viesse tirar, do fundo das águas, a pedra lançada por Wairê e jogar novamente o talo de buriti; que viesse tirar o mar do seu lugar e abrir novamente o caminho na direção dos céus; que viesse oferecer novamente ao índio (de hoje) os bens deste mundo, garantindo-lhe a vida plena, a satisfação de todas as coisas e remindo-o de todos os seus sofrimentos.
Foi referindo-se a esse fenômeno, que Don Richardson, no seu livro “O Fator Melquisedeque” chamou a Jesus de “O Messias de Todos os Povos”[15]. Foi referindo-se também ao mesmo fenômeno que ele deu ao referido livro, em inglês, o título “Eternity in Their Hearts” - Com a Eternidade nos Corações - inspirado que foi nas palavras do pregador em Eclesiastes 3.11: “... também pôs a eternidade no coração do homem...”[16].
Concluindo, penso que se o povo Xerente, em qualquer momento de sua experiência, decidisse se tornar messiânico histórico (e isso não me parece uma idéia alienígena) ele poderia facilmente criar uma nova lenda mais ou menos assim: “No começo, quando Bdâ e Wairê subiram ao céu, antes de partirem, Bdâ prometeu que, um dia, voltaria à terra (conferir João 1.14). Em aqui chegando, com pena do povo, em seus sofrimentos, ele iria descer até as profundezas das águas para tirar a pedra que Wairê jogara, substituindo-a novamente pelo talo de buriti. Ao fazer isso, ele iria acabar com a morte e devolver ao índio a ressurreição e a vida que o mesmo houvera perdido (conferir João 11.25,26; II Timóteo 1.10); Ele iria abrir um novo caminho para o céu, permitindo aos índios visitarem Bdâ quando quisessem, e até iria fazer desaparecer o mar (conferir Hebreus 10.19,20; Apocalipse 21.1c); Bdâ iria também oferecer ao índio (de novo) a vida plena, a prosperidade e iria tirar toda dor e todo sofrimento, transformando tudo isso em paz, felicidade e justiça para sempre (conferir Mateus 6.33; João 10.10; Apocalipse 21.3-5).
Com uma lenda dessa natureza, a mais, o Xerente estaria mudando, fatalmente, a sua cultura. Mas, parece-me que não mais do que neste único ponto: Ele deixaria de ser messiânico existencial, para se tornar messiânico histórico, como, aliás, outros povos indígenas brasileiros o são. Mas ele não deixaria de ser Xerente, não perderia a sua identidade étnica nem as suas raízes mais antigas. Ele seria, sim, um povo mais esperançoso, mais otimista, mais altivo e menos sofredor.


[1] Dicionário de Sociologia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990.
[2] Kohn, Hanz. 1959. “Messianism” Encyclopaedia of Social Sciences, vol. 10, The Macmllian Company, New York, pp 356-364, citado, em parte, por Júlio Cezar Melatti em “O Messianismo Craô”, Editora Pedagógica Universitária, São Paulo, 1972. Popovich Frances B., “O Messianismo” in “Movimentos Religiosos Populares”- Primeira Consulta Missiológica, Centro Evangélico de Missões, Viçosa, MG, apostila, pp 1-8. Dicionário de Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas e Fundação de Assistência ao Estudante, Rio de Janeiro, 1987.
[3] Ramos, Artur. “Introdução à Antropologia Brasileira – As Culturas Indígenas”, Livraria Editora da C.E.B., Rio de Janeiro, 1971, pp 115-140. Clastres, Hélène. “Terra Sem Mal” Editora Brasiliense, São Paulo, 1978, Tradução do original em francês “La Terre Sans Mal” Éditions du Seuil, 1975.
[4] O termo foi criado para se fazer o contraste entre povos esperancistas e povos fatalistas.
[5] Clastres, op. cit. pp 60-67
[6] A palavra Dasæpê, na sua etimologia, compreende três idéias: da- ‘povo’; sæ- ‘tornar-se’ e pê ‘bom/bem’. A festa durava, antigamente, cerca de um mês (uma lua) e hoje raramente passa de uma semana.
[7] Etimologicamente, Waptokwa vem de Wa- ‘prefixo possessivo da primeira pessoa do plural; -pto- ‘verbo gerar, nascer, germinar e –kwa ‘sufixo instrumental humano’.
[8] No caso de pessoas dignitárias do sexo feminino, o termo referido é Wazeparkwa ‘nossa mãe’.
[9] Alguns informantes mais jovens já não sabem mais associar Waptokwa Zawre ao Bdâ das lendas.
[10] Nimuendajú, Curt. “The Šerente” The Southwest Museum Administrator of The Fund, Los Angeles, 1942, pp 84-89.
[11] Fala-se hoje ainda de Sdakro tdêkwa ‘donos do sol’ - sdakro é um outro nome para o sol referindo-se ao astro que dá o calor, e não ao personagem que é Bdâ. As informações sobre os sdakro tdêkwa são poucas e raras.
[12] a não ser numa única lenda em que Hêpãrwawå quer matar Bdâ, e lhe oferece frutas (não silvestres) outrora venenosas, como a laranja, o abacaxi e outros produtos como cana, etc. para que ele os comesse e morresse. Mas, no processo de provar esses produtos, eles se tornaram saudáveis.
[13] As três lendas aqui descritas foram contadas pelos índios (já falecidos) Pedro Rbemåkwa e José Teodoro Sizapi, da extinta aldeia do Baixão, e gravadas nos anos 60. A lenda das viagens para o céu, teve a sua gravação danificada. As outras duas estão preservadas, no seu original, em fita cassete.
[14] Em Xerente, hêwa nnãkrda ‘começo do céu’. Refere-se àquele ponto no horizonte onde, quando o sol nasce, dá a impressão de que sol, terra e céu estão juntos. Os índios crêem que se uma pessoa chega lá, bem ao nascer do sol, ela pode subir com o mesmo).
[15] Richardson, Don “Um Messias Para Todos os Povos” in “O Fator Melquisedeque” Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, São Paulo, 1986, pp 136-158
[16] A Bíblia Sagrada – Antigo e Novo Testamento. Edição Revista e Atualizada no Brasil. Sociedade Bíblica do Brasil, Brasília, 1969

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